Atravessando as portas duplas do supermercado, KamõesRazarolho estava ainda a tentar habituar os seus olhos à típica luz marmórea que permeia o interior de qualquer moderna superfície comercial, quando o sinal soou, de forma discreta mas audível. O sinal que indicava que um desafio havia sido lançado. "Foda-se", murmurou ele para sido próprio como quem se força a engolir um naco de comida fora do prazo, "não posso tirar dez minutos para vir as compras sem que um imbecil qualquer me ponha em combate". Um desafio não tinha forçosamente de ser aceite, afinal de contas as regras estipulam claramente que o desafiado pode sempre recusar a proposta . Mas tendo em conta o marasmo em que a vida de Kamões se havia afundado, o pulsar rítmico vindo do bolso interior do seu casaco tomava a cada segundo a forma de um chamamento aliciante, um canto de sereia demasiado hipnótico.
Ultimamente a sua existência havia sido reduzida a um minimo denominador comum: trabalho, trabalho e ainda mais trabalho; uma parada cinzenta e monótona de obrigações, desfilando com a regularidade anestesiante de tanques na praça de uma qualquer ditadura esquecida, sendo ele próprio o único espectador do soporífero evento. Prazos de entrega para cumprir, trabalhos há muito pendentes para finalizar, um infindável numero de videochamadas para realizar a fim de contactar pessoas que não tinha o mínimo interesse em conhecer para discutir assuntos que não tinha o mínimo interesse em tratar. O trabalho a partir de casa havia se tornado o paradigma dominante da classe média, e o que poderia inicialmente ter sido acolhido como uma libertação de horários sufocante, escritórios claustrofóbicos, patrões sádicos e colegas incompetentes, era agora meramente um corte violento com a realidade palpável. As saídas de casa nos últimos meses haviam sido escassas, cada uma delas com o roteiro previamente traçado e um único objectivo definido: tratar de tudo aquilo que fosse estritamente necessário, no mais curto espaço de tempo possível, regressando sem delongas a um confinamento doméstico do qual a palavra lar havia sido expurgada. O mundo exterior havia se tornado sinónimo de supermercado, banco, departamento de controlo social, e uma ou outra visita ao centro de estimulação intramuscular, moderno substituto dos antigos ginásios.
Mesmo estas saídas, com fins puramente pragmáticos, não tinham necessariamente de ser efectuadas fisicamente. Afinal de contas não havia nenhuma compra, venda, transacção, negociação, depósito, levantamento, consulta, permuta, contracto, pagamento, recepção, aluguer, amortização, ou sessão de treino que não pudesse ser realizada digitalmente a partir do conforto do seu novo e dispendioso sofá indonésio, ao qual microscópicos cabos de fibra óptica transportavam toda a panóplia de caos organizado que compunha o mundo ocidental. Mas aceitar este novo paradigma na sua totalidade implicaria viver uma existência virtualmente desprovida de contacto físico com outros seres humanos; ser um monge carmelita da era da informação; em clausura não por devoção a um qualquer Deus medieval, mas porque o comboio de alta velocidade em que o século vinte e um se havia tornado não reservava lugares para retardatários. Era cumprir as exigências sociais ou vagar o lugar na carruagem, sabendo perfeitamente que a fila de pretendentes ao seu sofá era longa e ambiciosa.
A empregada de balcão, o subgerente da sucursal, a chefe de repartição eram assim as únicas figuras de carne e osso na sua vida. Familiares, amigos e engates haviam à muito se virtualizado, transformando-se progressivamente em rostos nos écrans e vozes nas colunas de som, harmonias binárias, que poderiam ou não corresponder a entidades físicas reais do outro lado da linha. A tendência para esta pobre imitação de interacção social havia começado ainda nos últimos tempos de faculdade, e só se havia agravado desde então. O ritmo acelerado e constante da percussão social deixa pouco espaço para pés de dança mornos e arrastados, e para coisas cada vez mais anacrónicas como namoros, jantaradas, ou longas discussões filosóficas pela noite dentro ao redor de um copo de mescal. Certamente deixa pouco tempo para o Jogo.
Para quem vivia intensamente o Jogo desde os quinze anos, tendo este ocupado uma larga fatia da sua adolescência e juventude, estes últimos meses de prisão caseira semivoluntária haviam criado uma ansiedade surda e crescente dentro de Kamões. Nas últimas semanas manter a atenção por um período de tempo superior a um quarto de hora numa qualquer tarefa era um feito exaustivo. A sua capacidade de concentração havia emigrado para o patamar das faculdades mentais inacessíveis. Era impossível negar durante mais tempo os sinais que indicavam a fome voraz por um bom combate. Kamões estava ressacar de Jogo, e esta oportunidade de obter uma dose rápida era demasiado aliciante para recusar.
Num impulso, sacou do seu conversor para ver a identidade do desafiante. O conversor, espelhando o gosto minimalista do seu portador, era de uma simplicidade primária: metalizado, as suas dimensões eram semelhante a um dos antigos telemóveis de terceira geração, distinguindo-se deles pelo facto de apenas possuir três botões, sendo estes meramente opcionais pois como qualquer outro aparelho digital de uso corrente o conversor funciona primariamente por sistema de reconhecimento de voz. Dominando a quase totalidade da sua superfície um visor em LCD esverdeado, cujo brilho ténue era agora ofuscado pela luminosidade asséptica do supermercado. Um nome pulsava no visor, juntamente com uma mensagem. "DigitalTat12 Challenges you for a level 5 duel. Accept? "
"Um puto... " não havia qualquer surpresa na constatação, "Só podia". Quem mais lançaria um desafio em pleno supermercado." Provavelmente colocou um holograma interactivo em seu lugar na escola virtual, e anda à procura de alguma diversão, enquanto os amiguinhos não vem ter com ele às Arcadas ou ao Alfa." Não era difícil de chegar a tais conclusões. Afinal era um facto sobejamente conhecido, divulgado pela impressa e analisado em mesas redondas por sociólogos e neuropsicólogos, referido inúmeras vezes de forma mais ou menos demagógica em campanhas políticas, e presente nos sonhos inquietos de muitos pais: a dependência do Jogo.
Todos os pós-08 estavam irremediavelmente viciados em combates: "já nasceram agarrados e nunca conheceram outra coisa...nem querem outra coisa!". Kamões por vezes imaginava-os a todos ainda na maternidade, cada um no seu respectivo berçário ou incubadora, lançando desafios uns aos outros por entre uma birra e uma sessão de amamentação. De certa forma para eles já não havia nada fora do Jogo. A vida havia se tornado apenas aquilo que acontece entre dois combates. Qualquer ocasião, tarefa, local ou situação, não importa quão rotineira, banal ou inapropriada era um motivo para lançar desafios. Na verdade alguns neuropsicólogos haviam recentemente especulado que um grande número de pós-08 haviam se tornado mentalmente incapazes de executar uma tarefa do princípio ao fim, a não ser claro que esta fosse executada em situação de combate. Uma análise um pouco caricatural talvez, mas com um certo fundo de verdade. Este Tat12 estaria provavelmente a fazer compras e confrontando-se com a falta de motivação que os pós-08 inevitavelmente sentem ao realizar o que eles chamam de "tarefas civis", resolveu lançar um desafio.
"Ora bem", pensou Kamões, "se o puto quer combater não lhe vou fazer essa desfeita". Pressionou o botão central duas vezes, o que correspondia a aceitar o desafio, e deixou-se ficar, esperando a resposta aparecer no visor, observando o vaivém da multidão, interrogando-se qual daquelas figuras que percorriam afoitamente o piso luzidio do supermercado em padrões nada aleatórios (uma vez que estes haviam sido cuidadosamente elaborados por neuropsicólogosociais), seria o seu adversário.
Ultimamente a sua existência havia sido reduzida a um minimo denominador comum: trabalho, trabalho e ainda mais trabalho; uma parada cinzenta e monótona de obrigações, desfilando com a regularidade anestesiante de tanques na praça de uma qualquer ditadura esquecida, sendo ele próprio o único espectador do soporífero evento. Prazos de entrega para cumprir, trabalhos há muito pendentes para finalizar, um infindável numero de videochamadas para realizar a fim de contactar pessoas que não tinha o mínimo interesse em conhecer para discutir assuntos que não tinha o mínimo interesse em tratar. O trabalho a partir de casa havia se tornado o paradigma dominante da classe média, e o que poderia inicialmente ter sido acolhido como uma libertação de horários sufocante, escritórios claustrofóbicos, patrões sádicos e colegas incompetentes, era agora meramente um corte violento com a realidade palpável. As saídas de casa nos últimos meses haviam sido escassas, cada uma delas com o roteiro previamente traçado e um único objectivo definido: tratar de tudo aquilo que fosse estritamente necessário, no mais curto espaço de tempo possível, regressando sem delongas a um confinamento doméstico do qual a palavra lar havia sido expurgada. O mundo exterior havia se tornado sinónimo de supermercado, banco, departamento de controlo social, e uma ou outra visita ao centro de estimulação intramuscular, moderno substituto dos antigos ginásios.
Mesmo estas saídas, com fins puramente pragmáticos, não tinham necessariamente de ser efectuadas fisicamente. Afinal de contas não havia nenhuma compra, venda, transacção, negociação, depósito, levantamento, consulta, permuta, contracto, pagamento, recepção, aluguer, amortização, ou sessão de treino que não pudesse ser realizada digitalmente a partir do conforto do seu novo e dispendioso sofá indonésio, ao qual microscópicos cabos de fibra óptica transportavam toda a panóplia de caos organizado que compunha o mundo ocidental. Mas aceitar este novo paradigma na sua totalidade implicaria viver uma existência virtualmente desprovida de contacto físico com outros seres humanos; ser um monge carmelita da era da informação; em clausura não por devoção a um qualquer Deus medieval, mas porque o comboio de alta velocidade em que o século vinte e um se havia tornado não reservava lugares para retardatários. Era cumprir as exigências sociais ou vagar o lugar na carruagem, sabendo perfeitamente que a fila de pretendentes ao seu sofá era longa e ambiciosa.
A empregada de balcão, o subgerente da sucursal, a chefe de repartição eram assim as únicas figuras de carne e osso na sua vida. Familiares, amigos e engates haviam à muito se virtualizado, transformando-se progressivamente em rostos nos écrans e vozes nas colunas de som, harmonias binárias, que poderiam ou não corresponder a entidades físicas reais do outro lado da linha. A tendência para esta pobre imitação de interacção social havia começado ainda nos últimos tempos de faculdade, e só se havia agravado desde então. O ritmo acelerado e constante da percussão social deixa pouco espaço para pés de dança mornos e arrastados, e para coisas cada vez mais anacrónicas como namoros, jantaradas, ou longas discussões filosóficas pela noite dentro ao redor de um copo de mescal. Certamente deixa pouco tempo para o Jogo.
Para quem vivia intensamente o Jogo desde os quinze anos, tendo este ocupado uma larga fatia da sua adolescência e juventude, estes últimos meses de prisão caseira semivoluntária haviam criado uma ansiedade surda e crescente dentro de Kamões. Nas últimas semanas manter a atenção por um período de tempo superior a um quarto de hora numa qualquer tarefa era um feito exaustivo. A sua capacidade de concentração havia emigrado para o patamar das faculdades mentais inacessíveis. Era impossível negar durante mais tempo os sinais que indicavam a fome voraz por um bom combate. Kamões estava ressacar de Jogo, e esta oportunidade de obter uma dose rápida era demasiado aliciante para recusar.
Num impulso, sacou do seu conversor para ver a identidade do desafiante. O conversor, espelhando o gosto minimalista do seu portador, era de uma simplicidade primária: metalizado, as suas dimensões eram semelhante a um dos antigos telemóveis de terceira geração, distinguindo-se deles pelo facto de apenas possuir três botões, sendo estes meramente opcionais pois como qualquer outro aparelho digital de uso corrente o conversor funciona primariamente por sistema de reconhecimento de voz. Dominando a quase totalidade da sua superfície um visor em LCD esverdeado, cujo brilho ténue era agora ofuscado pela luminosidade asséptica do supermercado. Um nome pulsava no visor, juntamente com uma mensagem. "DigitalTat12 Challenges you for a level 5 duel. Accept? "
"Um puto... " não havia qualquer surpresa na constatação, "Só podia". Quem mais lançaria um desafio em pleno supermercado." Provavelmente colocou um holograma interactivo em seu lugar na escola virtual, e anda à procura de alguma diversão, enquanto os amiguinhos não vem ter com ele às Arcadas ou ao Alfa." Não era difícil de chegar a tais conclusões. Afinal era um facto sobejamente conhecido, divulgado pela impressa e analisado em mesas redondas por sociólogos e neuropsicólogos, referido inúmeras vezes de forma mais ou menos demagógica em campanhas políticas, e presente nos sonhos inquietos de muitos pais: a dependência do Jogo.
Todos os pós-08 estavam irremediavelmente viciados em combates: "já nasceram agarrados e nunca conheceram outra coisa...nem querem outra coisa!". Kamões por vezes imaginava-os a todos ainda na maternidade, cada um no seu respectivo berçário ou incubadora, lançando desafios uns aos outros por entre uma birra e uma sessão de amamentação. De certa forma para eles já não havia nada fora do Jogo. A vida havia se tornado apenas aquilo que acontece entre dois combates. Qualquer ocasião, tarefa, local ou situação, não importa quão rotineira, banal ou inapropriada era um motivo para lançar desafios. Na verdade alguns neuropsicólogos haviam recentemente especulado que um grande número de pós-08 haviam se tornado mentalmente incapazes de executar uma tarefa do princípio ao fim, a não ser claro que esta fosse executada em situação de combate. Uma análise um pouco caricatural talvez, mas com um certo fundo de verdade. Este Tat12 estaria provavelmente a fazer compras e confrontando-se com a falta de motivação que os pós-08 inevitavelmente sentem ao realizar o que eles chamam de "tarefas civis", resolveu lançar um desafio.
"Ora bem", pensou Kamões, "se o puto quer combater não lhe vou fazer essa desfeita". Pressionou o botão central duas vezes, o que correspondia a aceitar o desafio, e deixou-se ficar, esperando a resposta aparecer no visor, observando o vaivém da multidão, interrogando-se qual daquelas figuras que percorriam afoitamente o piso luzidio do supermercado em padrões nada aleatórios (uma vez que estes haviam sido cuidadosamente elaborados por neuropsicólogosociais), seria o seu adversário.
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