Saturday, March 18, 2006

Duelo (ou A Harajukusação do Mundo)


"Bem, pelo menos o setting é uma novidade! ". No tempo em que para Kamões o Jogo havia sido bem mais do que um simples escape temporário a uma realidade sufocante, a escolha da localização teria seguido critérios mais... imaginativos. Uma vez que o conversor utilizava as condições físicas existentes para criar os desafios, um supermercado não prometia um duelo particularmente aliciante. Mas qualquer que fosse o palco, a dinâmica fundamental da representação não era alterada: dois actores e um cenário. Esta era a essência do Jogo.
Quando este havia sido inicialmente lançado em 2007, as primeiras vendas não tinham sido animadoras. Para toda uma geração nascida e criada sob a égide dos videojogos, com todo o confortável sedentarismo a eles associado, um jogo que implicasse mobilidade física parecia destinado ao fracasso. Cruzamento improvável entre antigas tradições lúdicas, como o peddy paper e os duelos de índios e cowboys, com a mais moderna tecnologia, o Jogo foi inicialmente considerado como mais um híbrido pós moderno, cujo momento duraria apenas alguns meses, e rapidamente cairia na obscuridade. Criado não por uma qualquer mega multinacional de jogos, mas por um velho matemático excêntrico, residente em S. Francisco, ex-professor da teoria de jogos em Princeton (aparentemente, com o mesmo grau de esquizofrenia que o seu conhecido e nobelizado predecessor). A sua criação teve apenas um pequeno voo rasante aquando do primeiro lançamento ao nível do mercado norte-americano. É certo que a companhia que criou os primeiros conversores não passava de uma pequena empresa californiana, ocupando uma fatia de mercado reduzida ao nível da distribuição noutros estados, e com uma presença praticamente nula no cenário internacional. Era composta, no entanto, por um corpo novo e dinâmico, ansioso por criar uma marca de diferença num mercado saturado pela uniformidade da oferta, e que viu na criação do Gandalf de Princeton, como este posteriormente foi apelidado, a alavanca necessária para mover o mundo do entretenimento em direcção a um novo paradigma. Durante o primeiro ano em que foi posto a venda, o Jogo passou praticamente despercebido, uma mera curiosidade regional, um registo anacrónico disfarçado sob um manto tecnológico, com um certo grau de popularidade entre as muitas tribos urbanas que compunham a ruas de S. Francisco: Neo Grungers, Magos Kaóticos, Tekno Vampiros e os sempre ubíquos Cyber Punks. Um míni fenómeno das margens, que dificilmente seria captado pelos omnipresentes radares do mundo corporativo. Os grandes dirigentes da indústria do lazer podiam dormir descansados. As consolas de jogos caseiras, agora na sua sétima geração, continuariam a marcar presença nos lares da classe média urbana de todo o mundo, pelo menos durante mais duas ou três gerações. Como quase sempre sucede nestes casos, o gigantesco umbiguismo dos Césares tecnocráticos obstruiu-lhes a visão periférica: o terramoto cujas ondas choque em breve percorreria todo o planeta como um tsunami digital, teve o seu epicentro na Coreia. Compreendendo o potencial dos povos asiáticos para consumir, canibalizar e transfigurar, com uma voracidade desconhecida no ocidente, tudo o que cheire a novidade, Seoul foi o local escolhido para proceder a segunda vaga de lançamentos, saltando assim por cima do cada vez mais atrofiado mercado europeu. O sucesso foi quase imediato, uma espécie de big bang lúdico, espalhando a partir do seu ponto zero torrentes de energia dinâmica. De súbito a juventude coreana tinha encontrado o seu zeitgeist, substituindo o grande desafio colectivo face ao apocalíptico vizinho do norte, por uma multiplicidade de desafios individuais entre si. Em lugar da retórica política, a efervescência tribal. Em lugar de uma guerra real, eternamente adiada e perpetuamente eminente, essa grande espada de damócles de urânio enriquecido suspensa no paralelo 38, os Coreanos podiam agora fragmentar uma ansiedade velha de meio século em milhões de míni batalhas virtuais. O sangue escorria livremente pelas artérias de Seoul, mas uma análise atenta não revelaria a presença de hemoglobina mas sim de zeros e uns. O Jogo havia se tornado a dinâmica essencial do inconsciente colectivo coreano. Tal como em breve o seria do mundo.

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