A malta da Estacão Central reflectia um dia destes sobre o conceito de home. Concordando na generalidade com as impressões do blog, e estando eu próprio neste limbo peculiar em que os emigras se movimentam, deu me para fazer uma pequena incursão pela memória das casas passadas.
A casa onde cresci foi seguramente um home, talvez mesmo O home. Afinal foi a primeira, e só este simples posicionamento na escala faz com que inevitavelmente se torne a bitola pela qual todas as futuras domus sejam julgadas. Um quarto andar num prédio suburbano, disforme de feiura inata, com tinta permanentemente a descascar, uma das muitas lápides de betão que os anos setenta relegaram para a posteridade. Espaço constrangedor e claustrofóbico, completo com as inevitáveis marquises, resultado de uma arquitectura de despersonalização que surgiu de um improvável cruzamento: as teorias pseudo utópicas do movimento modernista; a fúria construtora dos patos bravos, essa espécie autóctone que nenhuma gripe das aves algum dia poderá eliminar; e o inato mau gosto anárquico dos tugas. A falta da humidade da terra, de mãos dadas com a ausência da pulsão eléctrica de uma verdadeira urbe: assim são os subúrbios. Nem cidades nem serras. Nem rural nem urbano. Híbrido pós moderno que desagrada a gregos e a troianos. Não podia ter crescido em melhor sítio. Deixou-me para o resto da vida uma insatisfação latente que me fará sempre procurar algo melhor. O português da geração dos meus pais vive ainda na nostalgia do campo, expressa de forma exemplar nessa romaria tuga sazonal que é a "Ida à terra". Isto tolhe-lhes o percurso pois o seu horizonte será sempre o do passado, e nunca o do futuro. Já alguma da minha geração, crescendo na monotonia disfarçada dos subúrbios, foi misericordiosamente poupada a essa volta dos tristes. Afinal que vaga saudade se poderá sentir das colinas ionizadas de Sto António dos cavaleiros, da pastelaria Chave de Ouro com o balcão de fórmica onde se passavam as horas na cartada, do deambular à noite pelas ruas vazias procurando coisa nenhuma, do "faz lá essa", do permanente dia cinzento . Duvido que alguém, referindo-se à Damaia, Reboleira ou Odivelas, possa dizer com a voz embargada e o olhar mareado: "Este fim-de-semana vou a terra". No entanto, e apesar de tudo isto, esta casa para mim era definitivamente home. E era sem pensar nela como tal. Era o simplesmente. Enquanto somos crianças home e casa são uma só palavra, um só conceito. A separação só vem com o passar dos anos e das casas. Isto não ocorre de forma abrupta: o corte definitivo vem com a saída da casa dos pais (pois realmente é assim que esta passa a ser concebida no nosso imaginário). Mas este corte é apenas o corolário de um longo processo. O que na infância era aconchegante tornou-se ao longo da adolescência sufocante.
A primeira mudança foi uma lufada de poluíção fresca. Estava finalmente na cidade. Estava em Lisboa. Lisboa com os seus vários níveis de ruído incessante, a sua magnífica confusão. Os seus bares, museus, ministérios, jardins, becos, tascas, fontes, alamedas, miradouros. O metropolitano a rugir por debaixo dos pés, os aviões a caminho da portela, ameaçando colisão a cada aterragem. O que mais se pode querer? Não estava ainda por minha conta, pois tinha de partilhar aqueles preciosos metros quadrados com outros recém libertos, mas isso não se revelou problemático. Em algumas alturas foi mesmo uma experiencia de companheirismo. No entanto a constatação atingiu-me um dia com toda a sua forca epifanica: tinha um tecto sob a minha cabeça e água quente nas torneiras, mas estava homeless. A minha antiga casa tinha deixado de o ser, e a nova jamais o seria, pois tudo nela soletrava precariedade, apenas um local de passagem. O meu home nestes anos deixou de ser a casa específica onde eu habitava, para englobar todo o espaço urbano à minha volta. Os meus companheiros de casa não eram só as pessoas que viviam comigo, mas também o arrumador da esquina, o gajo do café, a miúda da livraria, o sem abrigo do vão de escada, o homem dos bolos. Cumprimentava pela primeira vez na vida a vizinha de baixo, não por um qualquer sentido obrigação social, mas por que sentia que a velha senhora era verdadeiramente um membro da minha nova e extensa família. Soltava os bons dias, tardes e noites nos locais de passagem habituais, largava tudo bens aqui e ali e dizia adeus ao homem que diz adeus. A relação tinha se invertido. Espaço exterior e interior trocavam de campo ao meio tempo. Onde antigamente o espaço fora das quatro paredes da casa era uma inexpressiva terra de ninguém, tinha agora um home sem paredes.
Nunca gostei de pequenas mudanças. Sendo assim quando decidi mudar de casa pela segunda vez mudei também de país. Num percurso que transpira lusitanidade até à medula, tornei-me o vulgo emigra. Desde que aportei a terras holandesas já estive em quatro casas diferentes. Já fui hóspede, residente temporário em regime de boa vontade e inquilino. Nenhuma destas casas foi um home. E digo isto apesar de me encontrar neste preciso momento dentro de uma delas, sentado a secretária a escrever este post. E não o foram por uma multiplicidade de razões. Não o foram porque não estive nelas o tempo suficiente para torná-las como tal. Não o foram porque são ainda espaços alienígenas: não reconheço a arquitectura, a configuração, ou a decoração. Foram pensadas e feitas por uma mentalidade que eu ainda só muito parcialmente consigo descodificar. Olho à minha volto e deparo com pormenores que não encontram significado no meu mapa mental. A casa que ocupamos, quando passamos a viver noutras paragens, é um reflexo de toda a estranheza que nos engloba no dia-a-dia. Umas vezes fascinante, outras frustrante, mas sempre estranho, sempre o outro. Passar de viajante a residente demora muitos anos e até lá vivemos no que sempre será uma espécie de quarto de hotel alargado. Ao fim de algum tempo já não há grandes surpresas. Conhecemos o porteiro, o tipo da recepção, e a empregada de limpezas. Sabemos de cor os números a discar e qual a melhor altura de ir ao pequeno-almoço. De vez em quando até ousamos fazer um improviso jazzístico no piano do bar, para o gáudio delirante dos dois bêbados presentes. Um quarto de hotel muito familiar, mas ainda assim um quarto de hotel, e este dificilmente pode ser um home.
Home para mim deixou de ser um sítio concreto, largou substancia e existe agora apenas como um conceito, uma abstracção, in potentia, à espera do momento e espaço específicos onde poderá de novo ganhar um corpo material. Até lá venham novas casas (e cidades e países). Podem não ser homes mas é sempre bom ter um sitio para sair da chuva.